domingo, 3 de maio de 2009

Poema inspirado em Augusto Boal

A canção civil

José Rocha

As noites negras
e os dias negros
foram exilados
no espelho retrovisor de um Volkswagen.
É de manhã.
e de manhã meu dedo amputado não dói.
É de manhã,
e todas as bruxas
e todos os vampiros
foram executados na primeira hora.

Não há previsão de temporal.
Há um sol que pousa
e avermelha os automóveis.
Cirandas.
Maracatus.
Cantigas de roda.

Não há cercas.
Não há mais do que ter medo.
Não há fantasmas no paiol.
Muros e totens no chão.
Dogmas.
Obrigações.

É permitido sonhar.
Ter esperanças é permitido.

Podemos todos sair,
nós e Augusto Boal,
e comer batatas fritas
e o oferecer batatas fritas ao sol.

Podemos todos sair,
nós e todas as mães,
e decorar os clarins
da Banda de Pífaros de Caruaru.

Podemos todos sair,
nós e todos os desejos recuperados,
e tecer uma bandeira.

É de manhã
e o vigia das manhãs não está mais lá.

Podemos todos, inclusive o vigia,
escancarar os portões.

José Rocha. No livro “Batatas fritas ao sol”. Página 48. 2ª edição. São Paulo-SP, 1997

Nota do autor: O poema “A canção civil” foi inspirada nas primeiras eleições presidenciais diretas (com o voto do povo) que o Brasil teve depois da ditadura militar (1964-1985). Meu candidato era Luiz Inácio Lula da Silva e, na madrugada do dia da eleição, no segundo turno, de Lula contra Collor, escrevi este poema. Ele é uma alegoria à liberdade de expressão, ao direito do voto, à democracia. O teatrólogo Augusto Boal (foto), que faleceu ontem, no Rio de Janeiro, me inspirou na imagem de “comer batatas fritas e oferecer batatas fritas ao sol”, porque, durante o regime militar, ele foi preso durante os ensaios de uma de suas peças, comendo batatas fritas com guaraná em São Paulo. No dia em que escrevi este poema, pensei na imagem de Boal e a usei em “A canção civil” para mostrar o quanto é ruim uma ditadura. No caso do Brasil, durante a ditadura militar, vejam só, nem comer batatas fritas com guaraná em paz era possível. E viva as batatas fritas! E viva a democracia! E viva Augusto Boal!

Um comentário:

Amar sem sofrer na Adolescência disse...

Coisas que só a manhã recém-chegada sabe trazer e levar. É verdade que a manhã leva todos os medos e traz com ela todas as possibilidades. Adorei.
Stella Tavares

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